Stephen Jay Gould, professor de Harvard e famoso paleontólogo e divulgador de ciência americano, escreveu em um de seus livros que: “Chegamos perto, milhares e milhares de vezes, de ser deletados pela guinada radical da história para outro caminho possível. Volte a fita e torne a passar milhões de vezes e duvido que algo parecido com o 'Homo sapiens' evoluísse novamente alguma outra vez. A vida é mesmo maravilhosa.” (Wonderful Life, 1989). Gould sabe muito bem do que está falando, pois é mundialmente famoso na área da biologia evolutiva por ter ajudado a propor o modelo do Equilíbrio Pontuado, uma importante contribuição à teoria da evolução de Darwin. Gould era agnóstico, mas a frase dele não tem nada a ver com religião, é uma afirmação totalmente científica. De fato, praticamente toda a comunidade científica tem a mesma visão que ele e concordaria com a frase sem hesitar. O problema não é a afirmação em si, porque não passa de uma constatação, mas as interpretações que se podem dar a ela.
A afirmação de Gould tem relação com o chamado “ajuste fino” (tradução livre da expressão inglesa fine-tuning) das leis da natureza. O termo ajuste fino é bem conhecido na física teórica mas provavelmente tem sua origem nos laboratórios. Pense no caso de se medir o comprimento de uma barra com uma régua. Primeiro se aproxima a régua da barra, isso já dá uma medida “grosseira”. Depois, com cuidado, se alinha as extremidades da régua e da barra e se marca a posição, o que dá uma medida mais precisa, mais “fina”. O “ajuste fino” das leis da natureza é o fato de que se as leis da natureza fossem ligeiramente diferentes do que são, não existiria vida na Terra ou, ao menos, não vida humana.
Este ajuste fino das leis do universo leva ao “Princípio Antrópico”. A palavra antrópico tem sua raiz no grego e está relacionada com ser humano. Existem vários enunciados do Princípio Antrópico, de maneira informal pode-se dizer que afirma que a vida é uma necessidade do universo. Mas já aviso que esta definição informal não é unânime, há muita discordância quanto à definição do Princípio Antrópico, pois ela está no campo da filosofia e da metafísica. Penso, porém, que enunciado assim deixa clara a ideia do que trata o Princípio. Vou dar alguns exemplos concretos do que motiva estas ideias.
Pensar em vida é pensar em fragilidade. Via de regra, as formas de vida que conhecemos são muito sensíveis às condições do ambiente onde vivem. As temperaturas no universo podem variar de valores próximos do zero absoluto a milhões de graus centígrados (em alguns casos muito mais que isso). Entretanto, a vida necessita de temperaturas bem mais moderadas. Ainda que possamos encontrar alguns micro-organismos vivendo em temperaturas extremas, elas não chegam nem perto dos extremos do universo. O mesmo vale para outras condições físicas, como pressão, taxas de radioatividade ou de presença de radiação nociva (como raios-x ou ultravioleta), etc. Para que haja vida é necessário que existam condições ambientais moderadas, e mais, que sejam estáveis dentro de um tempo considerável, de milhares a milhões de anos, dependendo do fator que se considera.
Apesar de impressionantes, estas condições especiais que encontramos na Terra, e que talvez num futuro próximo também possamos encontrar em outros planetas do universo, são muito menos impactantes do que outras condições muito mais singulares que foram necessárias para haver vida hoje. Especialmente vida inteligente, ou seja, nós. Os exemplos mais fáceis de entender são as próprias leis da natureza. Tanto a lei da atração eletromagnética quanto a lei da gravidade variam com o inverso do quadrado da distância. Dobre a distância entre a Terra e o Sol que a força gravitacional entre eles cai por um fator quatro. Se a dependência com a distância fosse diferente, cúbica por exemplo, não teríamos órbitas estáveis dos planetas em nem teríamos átomos estáveis. Sem estas duas condições, é simplesmente impossível existir qualquer vida, por mais estranha que possa ser.
O mesmo efeito acontece com muitas outras leis da natureza. Não só com as equações, mas com as constantes que estão envolvidas nestas leis e que dão uma medida da intensidade das interações fundamentais. As taxas de fusão nuclear no núcleo das estrelas, por exemplo, por um mínimo que fossem diferentes do que são, poderiam implicar em um universo completamente diferente, inclusive sem estrelas! E um universo sem estrelas é um universo sem variedade química, pois são as estrelas que fabricam quase todos os elementos químicos que conhecemos. No início do universo praticamente só havia hidrogênio e hélio, que foram transformados pelas estrelas em outros elementos, necessários para a existência de vida.
Estes poucos exemplos são suficientes para justificar a frase de John Polkinghorne, reverendo Anglicano e ex-catedrático de Física-matemática da Universidade de Cambridge: “O universo tinha bilhões de anos de idade quando a vida apareceu, mas ele já estava prenhe desta possibilidade desde o princípio” (O Princípio Antrópico e o Debate entre Ciência e Religião, em The Faraday Papers). Evidente que o Princípio Antrópico vem ao encontro dos cristãos que sempre viram o universo como uma criação de Deus feita para o homem, cume da criação. Dizer que Deus quis a criação e o homem é a maneira cristã de afirmar que o ser humano é uma necessidade, ou melhor um fim, do universo! Eis uma afirmação que dita assim nos meios laicistas em que vivemos hoje certamente causaria muitos protestos inflamados dos cientificistas de plantão. O curioso é que esta forma de pensar não tem nada de anticientífica. Muito pelo contrário, em parte se baseia exatamente nas descobertas mais fundamentais da física e da biologia.
É evidente que o ajuste-fino das leis da natureza e o Princípio Antrópico não são baseados só em ciência. Eles também levam em consideração argumentos filosóficos, teológicos e metafísicos. Mas quem disse que só a ciência tem as respostas para as perguntas dos homens? Ou indo mais longe, quem disse que só a ciência tem respostas legítimas para estas perguntas? Evidente que a fé também tem respostas legítimas, e muito mais importantes aliás. Há uma séries de argumentos contra e a favor do Princípio Antrópico. Tanto do ponto de vista religioso quanto científico. Vou voltar a este tema na próxima coluna e discutir os argumentos mais relevantes.
10/2011
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