Deus e Evolução

Avery Dulles, S.J.
Publicado em First Things (outubro de 2007)
http://www.firstthings.com/article.php3?id_article=6038

Durante a segunda metade do século dezenove, ficou comum falar de uma guerra entre ciência e religião. Mas no curso do século vinte, aquela hostilidade gradualmente diminuiu. Seguindo as pegadas do Segundo Concílio Vaticano, João Paulo II no começo de seu pontificado estabeleceu uma comissão para revisar e corrigir a condenação de Galileu no seu julgamento de 1633. Em 1983 ele organizou uma conferência celebrando o 350° aniversário da publicação de “Diálogo relativo a duas novas ciências”, no qual ele comentou que a experiência do caso Galileu levou a Igreja “para uma atitude mais madura e uma compreensão mais exata da autoridade própria dela”, permitindo-a distinguir melhor entre “elementos essenciais à fé” e “sistemas científicos de uma época”.
De 21 a 26 de setembro de 1987, o papa patrocinou uma semana de estudos sobre ciência e religião em Castelgandolfo. Em 1° de junho de 1988, refletindo sobre os resultados desta conferência, ele enviou uma carta positiva e encorajadora ao diretor do Observatório do Vaticano, guiando um meio termo entre a separação e a fusão das disciplinas. Ele recomendou um programa de diálogo e interação, no qual ciência e religião procurariam nem suplantar e nem ignorar uma à outra. Elas deveriam procurar juntas por uma compreensão mais profunda das competências e limitações de cada uma, e deveriam olhar especialmente para os aspectos em comum. A ciência não deveria tentar tornar-se religião, nem a religião procurar tomar o lugar da ciência. A ciência pode purificar a religião do erro e da superstição, enquanto a religião purifica a ciência da idolatria e de falsos absolutos. Cada disciplina deve, portanto, manter sua integridade e estar aberta aos vislumbres e descobertas da outra.
Em uma mensagem amplamente noticiada sobre evolução para a Pontifícia Academia de Ciências, enviada em 22 de outubro de 1996, João Paulo II observou que, ao passo que há várias teorias da evolução, o fato da evolução do corpo humano a partir de formas inferiores de vida é “mais que uma hipótese”. Mas a vida humana, ele insistiu, era separada de tudo que é menos do que humano por uma “diferença ontológica”. A alma espiritual, disse o papa, não emerge simplesmente de forças da matéria vivente nem é um mero epifenômeno da matéria. A fé nos permite afirmar que a alma humana é imediatamente criada por Deus.
Em alguns círculos o papa foi interpretado como tendo aceitado a visão neo-darwinista de que a evolução é suficientemente explicada por mutações randômicas e seleção natural (ou “sobrevivência do mais apto”) sem nenhum tipo de propósito governante ou finalidade. Procurando compensar esta interpretação errada, Christoph Cardeal Schönborn, o arcebispo de Viena, publicou em 7 de julho de 2005 um op-ed no New York Times, no qual ele citou uma série de pronunciamentos de João Paulo II no sentido contrário. Por exemplo, o papa declarou em uma Audiência Geral de 19 de julho de 1985: “A evolução dos seres humanos, da qual a ciência procura determinar os estágios e discernir os mecanismos, apresenta uma finalidade interna que desperta admiração. Esta finalidade que dirige os seres em uma direção para a qual eles não são responsáveis, obriga a supor uma Mente que é sua inventora, sua criadora”. Nesta conexão, o papa disse que atribuir a evolução humana à chance absoluta seria uma abdicação da inteligência humana.
O cardeal Schönborn também citou o papa Bento XVI, que afirmou na sua missa inaugural como papa em 24 de abril de 2005: “Nós não somos um produto casual e sem sentido da evolução. Cada um de nós e o resultado de um pensamento de Deus. Cada um de nós é querido, cada um de nós é amado, cada um de nós é necessário”.
O artigo do cardeal Schönborn foi interpretado por muitos leitores como uma rejeição da evolução. Algumas cartas ao editor acusaram-no de favorecer uma forma retrógrada de criacionismo e de contradizer João Paulo II. Eles pareceram incapazes de compreender o fato de que ele estava falando a linguagem da filosofia clássica e não estava optando por qualquer posição científica. Sua crítica era dirigida aos neo-darwinistas que se pronunciam em questões filosóficas e teológicas através dos métodos da ciência natural.
Muitas autoridade nestas questões, como Kenneth R. Miller e Stephen M. Barr, nas suas respostas a Schönborn, insistiram que se pode ser um neo-darwinista na ciência e um fiel cristão ortodoxo. Distinguindo diferentes níveis de conhecimento, eles alegaram que o que é randômico do ponto de vista científico, está incluído no plano eterno de Deus. Deus, por assim dizer, joga os dados mas é capaz, por seu conhecimento total, de prever o resultado por toda a eternidade.
Esta combinação de darwinismo na ciência e teísmo na teologia pode ser sustentada, mas não é a posição que Schönborn tentou atacar. Como ele deixou claro em um artigo subsequente em First Things (janeiro de 2006), ele estava fazendo objeções somente àqueles neo-darwinistas – e eles são muitos – que mantém que nenhuma investigação válida da natureza poderia ser conduzida exceto no redutivo modo do mecanismo, que procura explicar tudo em termos de quantidade, matéria e movimento, excluindo diferenças específicas e propósito na natureza. Ele citou um destes neo-darwinistas como declarando: “A ciência moderna implica diretamente em que o mundo é organizado estritamente de acordo com princípios determinísticos ou acaso. Não há quaisquer princípios de propósito na natureza. Não há deuses e nenhuma força modeladora racionalmente detectáveis”.
O cardeal Schönborn observa astutamente que os cientistas positivistas começam excluindo metodologicamente causas finais e formais. Tendo então descrito os processos naturais em termos meramente de causalidade eficiente e material, eles se viram e rejeitam qualquer outro mecanismo de explicação. Eles simplesmente proíbem as questões sobre por que alguma coisa (incluindo vida humana) existe, como nós diferimos em natureza dos animais irracionais, e como nós devemos conduzir nossas vidas.
Nos últimos anos houve uma explosão de literatura ateísta que proclama a autoridade da ciência, e especialmente teorias darwinistas da evolução, em demostrar que é irracional acreditar em Deus. Os títulos de alguns destes livros são reveladores: O fim da fé de Sam Harris1, Quebrando o encanto: a religião como fenômeno natural de Daniel Dennett2, Deus, um delírio de Richard Dawkins3 e Deus: a hipótese fracassada de Victor J. Stenger4. Os novos ateístas estão escrevendo com o entusiasmo de evangelistas propagando o evangelho do ateísmo e da irreligião.
Estes escritores geralmente concordam em sustentar que evidência, entendida no senso científico, é a única base válida para crença. A ciência realiza observações objetivas por olho e por instrumentos; constrói modelos ou hipóteses para levar em conta o fenômeno observado. Ela então testa as hipóteses deduzindo consequências e vendo se elas podem ser verificadas ou falsificadas pelo experimento. Todos os fenômenos mundanos são presumidamente explicáveis referindo-se à corpos e forças contidos neste mundo. A menos que Deus fosse uma hipótese verificável testada pelo método científico, eles sustentam, não haveria base para crença religiosa.
Richard Dawkins, um porta-voz líder desta nova anti religião, pode ser tomado como um representante da classe. As provas da existência de Deus, ele crê, são todas inválidas, dentre outros defeitos elas deixam sem resposta a questão “Quem fez Deus?” “Fé”, ele escreve, “é o grande pretexto, a grande desculpa para evadir-se da necessidade de pensar e avaliar evidência. ... Fé, sendo crença que não é baseada em evidência, é o principal vício em qualquer religião.” Levado pela sua própria ideologia, ele fala da “frivolidade da mente religiosamente doutrinada.” Ele ostenta que, na busca para explicar a natureza da vida humana e do universo no qual nos encontramos, a religião “está agora completamente superada pela ciência.”
A compreensão de Dawkins de fé religiosa como um compromisso irracional soa ao católico como estranha. O Primeiro Concílio Vaticano condenou o fideísmo, a doutrina de que a fé é irracional. Ele insistiu que fé está e deve estar em harmonia com a razão. João Paulo II desenvolveu a mesma idéia na sua encíclica sobre Fé e Razão, e Bento XVI no seu discurso em Regensburg em 12 de setembro de 2006, insistiu na necessária harmonia entre fé e razão. Naquele contexto, ele apelou por uma retomada da razão em todo seu sentido, compensando a tendência da ciência moderna de limitar a razão ao verificável empiricamente.
Católicos que são especialistas em ciências biológicas têm várias posições diferentes sobre evolução. Como eu indiquei, um grupo, enquanto explicando evolução em termos de mutações randômicas e sobrevivência do mais apto, aceita a posição darwinista como precisa no nível científico mas rejeita o darwinismo como um sistema filosófico. Este primeiro grupo sustenta que Deus, prevendo eternamente todos os produtos da evolução, usa o processo natural da evolução para realizar Seu plano criativo. Seguindo Fred Hoyle, alguns membros deste grupo falam do “princípio antrópico,” entendendo que o universo foi “ajustado” desde o primeiro momento da criação para permitir o surgimento da vida humana.
Um exemplo recente deste ponto de vista pode ser encontrado no livro de 2006 de Francis S. Collins: A linguagem de Deus5. Collins, um mundialmente renomado especialista em genética e microbiologia, foi criado sem qualquer crença religiosa e se tornou um cristão depois de terminar seus estudos em química, biologia e medicina. Seu conhecimento profissional nestes campos convenceu ele de que a beleza e a simetria dos genes e genomas humanos testemunham fortemente em favor de um Criador sábio e amoroso. Mas Deus, ele crê, não precisa intervir no processo da evolução corporal. Collins defende uma teoria de evolução teística que ele designa como posição BioLogos.
Apesar de Collins não ser católico, ele se refere com aprovação às visões de João Paulo II sobre evolução na mensagem de 1996 à Pontifícia Academia de Ciências. Ele baseia-se nos trabalhos do sacerdote anglicano Arthur Peacock, que escreveu o livro intitulado Evolução: A amiga disfarçada da fé6. Ele cita com satisfação as palavras do presidente Bill Clinton, que declarou em uma celebração do Projeto Genoma Humano na Casa Branca em junho de 2000: “Hoje nós estamos aprendendo a linguagem com a qual Deus criou a vida. Estamos tendo ainda mais reverência pela complexidade, pela beleza e maravilha do mais divino e sagrado dom de Deus.”
Evolucionismo teísta, como o darwinismo clássico, se abstém de afirmar qualquer intervenção divina no processo de evolução. Ele admite que o surgimento dos corpos vivos, incluindo o humano, pode ser explicado no nível empírico através de mutações randômicas e sobrevivência do mais apto.
Mas o evolucionismo teísta rejeita as conclusões ateístas de Dawkins e seus coortes. As ciências físicas, eles defendem, não são a única fonte aceitável da verdade e da certeza. A ciência tem uma competência real, porém limitada. Ela pode nos dizer muito sobre os processos que podem ser observados ou controlados através dos sentidos ou por instrumentos, mas não tem meios de responder questões profundas envolvendo a realidade como um todo. Longe de ser capaz de substituir a religião, ela não pode começar a dizer-nos o que trouxe o mundo à existência, nem porque o mundo existe, nem qual é o nosso destino final, nem como nós devemos agir para sermos o tipo de pessoas que devemos ser.
Visto como um sistema científico, o darwinismo tem algumas características atraentes. Sua grande vantagem é a simplicidade. Ignorando diferenças específicas entre os diferentes tipos de seres e o propósito pelo qual agem, o darwinismo deste tipo reduz todo o processo da evolução para matéria e movimento. Neste nível próprio produz explicações plausíveis que parecem satisfazer muitos cientistas experimentais.
Apesar dessas vantagens, o darwinismo não triunfou completamente, nem mesmo no campo científico. Uma importante escola de cientistas defende uma teoria conhecida como Design Inteligente. Michael Behe, professor na Universidade de Lehigh, defende que certos órgãos dos seres vivos são “irredutivelmente complexos”. Sua formação não pode acontecer por pequenas mutações randômicas porque alguma coisa que tivesse somente algumas, mas não todas as características do novo orgão não teria razão para existir e nenhuma vantagem para sobrevivência. Não faria sentido algum, por exemplo, para a pupila do olho evoluir se não houvesse retina para acompanhá-la, e também não faria sentido haver uma retina sem pupila. Como exemplo de um orgão complexo no qual todas suas partes são interdependentes, Behe propõe o flagelo bacterial, uma ferramenta natatória maravilhosa usada por algumas bactérias.
Neste ponto entramos em uma disputa técnica entre microbiologistas a qual não tentarei julgar. Em favor de Behe e sua escola, podemos dizer que a possibilidade de grandes mudanças súbitas feitas por uma inteligência maior não podem ser previamente descartada. Mas podemos tomar isso como um sonoro princípio de que Deus não intervém na ordem criada sem necessidade. Se a produção de órgãos como o flagelo bacteriano pode ser explicada por acumulação gradual de pequenas variações randômicas, a explicação darwinista deve ser preferida. Por uma questão de política, é imprudente basear a fé de alguém no que a ciência ainda não explicou, porque amanhã ela pode ser capaz de explicar o que não consegue hoje. A história nos ensina que “Deus tapa buracos” geralmente se mostra como uma ilusão.
O darwinismo é criticado, ainda, por um terceira escola de críticos, que inclui filósofos como Michael Polanyi, que se baseia no trabalho de Henri Bergson e Theilhard de Chardin. Filósofos desta orientação, não obstante suas mútuas diferenças, concordam que organismos biológicos não podem ser entendidos somente pelas leis da mecânica. As leis da biologia, sem de modo algum contradizerem aquelas da física e da química, são mais complexas. O comportamento dos organismos vivos não pode ser explicado sem levar em conta seu esforço por vida e crescimento. Plantas, por estenderem-se até a luz solar e alimentação, deixam escapar uma aspiração intrínseca para a vida e o crescimento. Esta finalidade interna as torna capazes de sucessos e falhas de maneiras que pedras e minerais não são. Por causa da lacuna ontológica que separa o vivente do não-vivente, o surgimento da vida não pode ser explicado com base em princípios mecânicos puros.
Em sintonia com esta escola de pensamento, o físico matemático inglês John Polkinghorne defende que o darwinismo é incapaz de explicar porque plantas e animais multicelulares surgem enquanto organismos celulares parecem lidar com mais sucesso ao ambiente. Deve haver, no universo, um impulso para formas mais complexas. O professor de Georgetown John F. Haught, em uma defesa recente do mesmo ponto de vista, observa que as ciências sociais obtém resultados exatos restringindo-se aos fenômenos mensuráveis, ignorando questões mais profundas sobre significado e propósito. Por este método, ela filtra a subjetividade, sentimento e esforço, tudo que é essencial para uma teoria completa da cognição. O darwinismo materialista é incapaz de explicar porque o universo dá origem à subjetividade, sentimento e esforço.
O filósofo tomista Etienne Gilson sustentou vigorosamente em seu livro de 1971 De Aristóteles até Darwin e de volta novamente7 que Francis Bacon e outros perpetraram um erro filosófico quando eliminaram duas das quatro leis de Aristóteles do domínio da ciência. Eles procuraram explicar tudo em termos mecânicos, referindo-se somente a causas materiais e eficientes, descartando causalidade formal e final.
Sem a forma, ou a causa formal, seria impossível explicar a unidade e a identidade específica de qualquer substância. Na composição humana a forma é a alma espiritual, que faz o organismo uma única entidade e o dá seu caráter humano. Uma vez que a forma seja perdida, os elementos materiais se decompõem e o corpo cessa de ser humano. Seria fútil, portanto, tentar definir seres humanos só em termos de seus componentes corporais.
Causalidade final é particularmente importante no domínio dos organismos vivos. Os órgãos do corpo animal ou humano não são inteligíveis exceto em termos de seu propósito ou finalidade. O cérebro não é inteligível sem referência à faculdade do pensamento que é seu propósito, nem são os olhos inteligíveis sem referência à função de ver.
Estas três escolas de pensamento são todas sustentáveis em uma filosofia cristã da natureza. Apesar de eu tender à terceira, reconheço que alguns especialistas bem qualificados professam o darwinismo teístico e o design inteligente. Todas as três destas perspectivas cristãs sobre evolução afirmam que Deus tem um papel essencial no processo, mas concebem o papel de Deus de maneiras diferentes. De acordo com o darwinismo teísta, Deus inicia o processo produzindo desde o primeiro instante da criação (o Big Bang) a matéria e energias que vão gradualmente desenvolver-se em vegetais, animais e eventualmente vida humana na Terra e talvez em mais lugares. De acordo com o design inteligente o desenvolvimento não ocorre sem intervenção divina em alguns estágios, produzindo órgãos irredutivelmente complexos. De acordo com a visão teleológica, o impulso da evolução e seu avanço em graus maiores de ser dependem da presença dinâmica de Deus na sua criação. Muitos adeptos desta escola diriam que a transição da existência físico-química para vida biológica, e as demais transições para vida animal e humana, requer uma dose adicional da energia criativa divina.
A maioria da comunidade científica parece ser ferozmente oposta à qualquer teoria que poderia trazer Deus ativamente para dentro do processo da evolução, como a segunda e a terceira teoria trazem. Cristãos darwinistas correm o risco de conceder demais aos seus colegas ateus. Eles podem estar excessivamente inclinados em garantir que todo o processo de surgimento aconteça sem envolvimento de qualquer entidade superior. Teólogos devem perguntar se é aceitável banir Deus de Sua criação desta maneira.
Muitos séculos atrás, um grupo de filósofos conhecido como Deístas defenderam uma teoria de que Deus teria criado o universo e cessado naquele ponto de ter qualquer influência. Muitos cristãos discordaram firmemente, defendendo que Deus continua a agir na história. No decorrer dos séculos, ele deu revelações aos seus profetas; realizou milagres; enviou seu próprio Filho para se tornar homem; ressuscitou Jesus da morte. Se Deus é tão ativo na ordem sobrenatural, produzindo efeitos que são publicamente observáveis, é difícil descartar, em princípio, todas intervenções no processo da evolução. Por que Deus deveria ser capaz de criar o mundo a partir do nada mas incapaz de agir dentro do mundo que ele fez? A tendência hoje é dizer que a criação não estava completa na origem do universo mas continua à medida que o universo se desenvolve em complexidade.
Phillip E. Johnson, um líder no movimento de Design Inteligente, acusou os cristãos darwinistas de cair em um deísmo atualizado, exilando Deus “para a área sombria anterior ao Big Big” onde ele “não deve fazer nada que possa causar problemas entre teístas e naturalistas científicos”.
A Igreja Católica tem mantido consistentemente que a alma humana não é produto de qualquer causa biológica mas é imediatamente criada por Deus. Esta doutrina levanta a questão de que se Deus não está necessariamente envolvido na criação do corpo humano, uma vez que o corpo humano vem a ser quando a alma é infundida. O advento da alma humana torna o corpo relacionado com ela e portanto humano. Apesar de poder ser difícil para o cientista detectar o ponto no qual o corpo em evolução passa de antropóide para humano, seria absurdo para um animal bruto – digamos, um chimpanzé – possuir um corpo perfeitamente idêntico ao humano.
Cientistas ateus geralmente escrevem como se a única maneira válida de raciocinar fosse a atual na ciência moderna: fazer observações e medidas precisas dos fenômenos, construir hipóteses para explicar as evidências, e confirmar ou negar as hipóteses pelos experimentos. Acredito ser difícil imaginar alguém vindo a acreditar em Deus por este caminho.
É verdade, claro, que a beleza e a ordem da natureza têm frequentemente motivado pessoas a acreditar em Deus como criador. O poder eterno e a majestade de Deus, diz São Paulo, é manifestada para todos a partir das coisas criadas por Deus. Ao povo de Listra, Paulo proclamou que Deus nunca se deixou sem testemunha, “por seus benefícios: dando-vos do céu as chuvas e os tempos férteis, concedendo abundante alimento e enchendo os vossos corações de alegria.”8 Filósofos cristãos elaboraram provas rigorosas baseados nestas revelações espontâneas. Mas estas provas dedutivas não se baseiam no moderno método científico.
Pode ser de interesse que o cientista Francis Collins chegou a acreditar em Deus não tanto a partir de contemplar a beleza e a ordem da criação – muito embora seja impressionante – mas como resultado da experiência moral e religiosa. Sua leitura de C.S. Lewis o convenceu de que há uma lei moral maior à qual estamos incondicionalmente sujeitos e de que a única fonte possível da lei é um Deus pessoal. Lewis também o ensinou a confiar no instinto natural através do qual o coração humano alcança inelutavelmente o infinito e o divino. Qualquer outro apetite natural – como aqueles por comida, sexo e conhecimento – tem um objeto real. Por que, então, deveria a ânsia por Deus ser uma exceção?
Crer em Deus é natural, e a crença pode ser confirmada por provas filosóficas. Entretanto, os cristãos geralmente acreditam em Deus, suspeito, não por causa destas provas mas porque eles reverenciam a pessoa de Jesus, que nos ensina sobre Deus por suas palavras e ações. Não seria possível ser um seguidor de Jesus e ser um ateu.
Cientistas como Dawkins, Harris e Stenger parecem saber pouquíssimo da experiência espiritual dos crentes. Como Terry Eagleton escreveu na sua resenha do livro de Dawkins “Deus, um delírio”, “Imagine alguém discursando sobre biologia mas cujo único conhecimento seja o Livro das Aves Inglesas, e você terá uma vaga idéia do que se sente ao ler Richard Dawkins escrevendo sobre Teologia ... Se racionalistas de carteirinha como Dawkins [fossem consultados] para fazer um julgamento sobre a geopolítica da África do Sul, sem dúvida eles iriam estudar o assunto até o último minuto, tão assiduamente quanto pudessem. Quando se trata de Teologia, porém, qualquer caricatura mal feita é aceitável.”
Alguns ateus cientificistas contemporâneos estão tão envolvidos na metodologia de suas áreas que eles imaginam que ela deva ser o único método para resolver qualquer problema. Mas outros métodos são necessários para lidar corretamente com questões de outra ordem. Ciência e tecnologia (a primavera da ciência) são totalmente inadequadas no campo da moralidade. Enquanto a ciência e a tecnologia aumentam vastamente o poder humano, o poder é ambivalente. Ele pode fazer bem ou mal; a mesma invenção pode ser construtiva ou destrutiva.
A tendência da ciência, quando vence, é realizar qualquer coisa que esteja dentro de sua capacidade, sem respeito a vínculos morais. Como temos experimentado em gerações recentes, tecnologia sem controle por padrões morais tem causado horrores incontáveis no mundo. Distinguir entre o uso certo e errado do poder, e motivar os seres humanos a fazer o que é certo até mesmo quando não se encaixa em sua conveniência, requer recorrer à normas morais e religiosas. Os apelos da consciência deixam claro que estamos inescapavelmente sob uma lei maior que requer de nós comportarmo-nos de certos modos e que julga nossa culpa se a desobedecermos. Nos dirigiríamos em vão aos cientistas para nos informarmos sobre leis maiores.
Alguns evolucionistas defendem que moralidade e religião surgem, evoluem, e persistem de acordo com princípios darwinistas. Religião, eles dizem, tem um valor de sobrevivência para indivíduos e comunidades. Mas este alegado valor de sobrevivência, mesmo que seja real, não nos diz nada sobre a veracidade ou falsidade de qualquer sistema moral ou religioso. Já que questões desta ordem maior não podem ser respondidas pela ciência, filosofia e teologia ainda têm um papel essencial para executar.
Justin Barrett, um psicólogo evolucionário, agora em Oxford, também é um cristão praticante. Ele crê que um Deus onisciente, onipotente, e perfeitamente bom fez os seres humanos para estar em uma relação de amor com Ele com os outros. “Por que não iria Deus,” ele pergunta, “nos planejar de um modo a achar a crença na divindade quase natural?” Mesmo que esses fenômenos mentais possam ser explicados cientificamente, a explicação psicológica não significa que devemos parar de crer. “Imagine que a ciência produza uma explicação convincente de porque eu penso que minha esposa me ama,” ele escreve, “eu deveria, então, parar de crer que nisso?”
Uma metafísica do conhecimento pode nos levar adiante na busca da verdade religiosa. Ela pode nos dar razões para pensar que a tendência natural para crer em Deus, manifestada entre todas as pessoas, não existe em vão. A biologia e psicologia podem examinar o fenômeno de baixo. Mas a teologia vê de cima, como o trabalho de Deus, nos chamando para Ele do fundo do nosso ser. Estamos, por assim dizer, programados para buscar vida eterna na união com Deus, a fonte pessoal e objetivo de tudo que é verdadeiro e bom. Este desejo natural de fixar-se nEle, apesar de poder ser suprimido por um tempo, não pode ser erradicado.
A ciência pode lançar uma luz brilhante nos processos da natureza e pode aumentar vastamente o poder humano sobre o ambiente. Usada corretamente, pode melhorar notavelmente as condições de vida aqui na Terra. Futuras descobertas científicas sobre evolução irão, presumivelmente, enriquecer a religião e a teologia, uma vez que Deus se revela através do livro da natureza bem como através da história redentora. A ciência, entretanto, realiza um desserviço quando clama ser a única forma válida de conhecimento, descartando a estética, a interpessoal, a filosófica e a religiosa.
A recente explosão de ateísmo cientificista é um sinal agoureiro. Se não for controlada, esta arrogância pode levar a um ressurgimento da guerra absurda que atingiu o século XIX, destruindo, deste modo, a harmonia dos diferentes níveis de conhecimento que foram fundamentais para nossa civilização ocidental. Em contraste, o tipo de diálogo entre a ciência evolucionária e a teologia, proposto por João Paulo II pode superar a alienação e levar a um autêntico progresso, tanto para ciência quanto para religião.




O cardeal Avery Dulles, S.J., detém a cátedra Laurence J. McGinley Chair sobre Religião e Sociedade na Universidade de Fordham.






Traduzido por Alexandre Zabot



1NT: Tradução literal, não encontrei título em português.
2NT: Edição traduzida pela Editora Globo
3NT: Edição traduzida pela Cia das Letras
4NT: Tradução literal, não encontrei título em português.
5NT: Edição traduzida pela Editora Gente
6NT: Tradução literal, não encontrei título em português.
7NT: Tradução literal, não encontrei título em português.

8NT: At 14,17. Usei a tradução da Bíblia Ave Maria.

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